quinta-feira, 10 de abril de 2008

O Homem que lia Voltaire

Hoje, ao amanhecer, deparei-me com dois cadáveres pairando sobre meu corpo. Enforcados e ruborizados. Ambos eram homens, que, de início, tive imensa dificuldade em reconhecer. Conservei-me por um longo tempo na cama, deixando o sangue precipitar-se sobre minha face. Contei as gotas. Abri a boca e busquei engolir os pingos vermelhos que desciam pela corda de aço.

Levantei-me após algumas horas. Preparei o café, mas já estava sem fome. Bocejei com vontade enquanto ouvia as vozes vociferantes que vinham da rua. Um protesto de criaturas inúteis e semicorrompidas. Humanos? Eu os vejo como cupins falantes. Tento não ficar furibundo com os diabos de homens que gritam aos meus ouvidos. Todavia, criei uma técnica: tornei-me gigante de Sírio. Ah, tudo ficou melhor e apaziguado. Mas a droga daquele cupinzeiro tanto insistiu que quase me devorou. Demoro-me sozinho em uma ruidosa gargalhada, pois sou imbatível durante o tempo em que me cultivo Micrômegas. A pequenez dos homens é realmente risível.

Varri meus dentes dourados, beijei o espelho. O nó na gravata, aprendi. Ah, meu terno, tanto me faz feliz! O livro do idiota francês permanecia sobre a escrivaninha. Importantes são os sofismas quando não se sabe interpretar um filósofo. Corri, a passos de tartaruga, para meus afazeres. Dia de cão! Duas horas sentado no banco macio do parlamento, inalando o fedor dos falaciosos emperucados. Quando saí daquele lugar, percebi que minhas axilas também fediam. Mas, pensando bem, chegou a ser um odor agradável.

Retornei exausto à minha casa. Só pensei na cama. Os homens apodreciam sobre meus aposentos. Eram eles: você e ti. Dei uma tragada no sangue de você. De ti, abri as veias, pois ainda estavam aproveitáveis. Depois me deitei e voltei a engolir o sangue, já escasso, que escorria deles.

O Violador

Maciel, imberbe e acanhado, descia o morro gramado e arborizado. Apontava para o lago, onde se banhava Maria. Metódico, inalou o perfume exalado pelas vestes femininas, dependuradas na macieira. Apanhou um fruto e sentou-se em um local estratégico, a fim de observar a bela nereida. Ao perceber a guria despontar do lago, emergindo nua das águas, alisando os cabelos, o jovem menino aguilhoou-se ao sentir um enrijecimento por entre as pernas.

Maria bem sabia que alguns depravados a observavam. Mesmo assim deixava-se despida, carnuda e excitante. Decerto, queria algo a mais do que ser somente contemplada. Maciel muito matutou, mas seu desejo não foi suficientemente nutrido, a ponto de abordar a jovem ninfeta. Mal sabia ele que não era o único que se aproveitada da conduta desregrada de Maria.

Homem robusto, cujas sobrancelhas formavam um “v”, conservava-se por entre as árvores, com uma fronte ameaçadora que fitava salivante a apetitosa provocadora. Era Ronaldo, o violador da cidade, que ambicionava cometer uma selvajaria. Aproximou-se como uma raposa de sua presa, enlaçou-a pela retaguarda e ameaçou-a com um facalhão. Maria, presa pelo maldito, tentou se acalmar. Convenceu-se de que o melhor a fazer seria oferecer de bom grado o que o homem apetecia. No entanto, o violador almejava tão-somente exercer seu ofício: violar. Desferiu ele fortes palmadas contra o rosto rosado e simétrico da guria. Desorientada, ela vociferou freneticamente a palavra “socorro”.

A poucos metros, Maciel mirou os dois corpos que rolavam relutantes sobre as folhas. Percebeu o facalhão que descansava ao lado deles. Correu titubeante em direção ao instrumento do violador. Pegou-o e gritou para o funesto:

- Farei em ti um notável estrago se não largares a moça.

- Pirralho fedorento! Devolve-me já o meu pertence. Queres mijar na cama, fedelho? – foi a reação de Ronaldo.

O menino estremeceu, mas não abandonou o objeto.

- Hei de cortar o instrumento de teu prazer, homem. Vamos, sai-te logo de cima da moça!

As palavras decididas de Maciel causaram um efeito persuasivo sobre o violador, que ergueu as calças e pôs-se a ir embora, jurando vingança contra o audacioso guri. Maciel não pôde acreditar na súbita bravura que empreendera.

- Como posso agradecer-te, bravo herói? – perguntou a moça, vestindo-se.

Maciel sentiu-se homem feito. No zíper da calça, um pulsante pontiagudo quase chamou a atenção de Maria. Ele, que tinha o manguito apoucado, evitou ser caçoado pela menina.

- Irás começar por retirar a tua roupa, vagabunda. – e apontou o facalhão para o pescoço de Maria.

Fim!

Meu antigo bar de blues

Trabalhei dia e noite em uma baiúca incômoda. No seio da cidade, lá eu estava. Cigarro que sempre pendia na boca, barba por fazer, pano umedecido nos ombros - sempre havia mesas para assear. Um cliente, amigo velho. Para este, eu oferecia a cachaça habitual. Nunca recusei ouvir as filosofias cujos fundamentos, rotineiramente, se perdiam em meio à inebriante história de chavelho. Somente os mal(a)-amados tinham a disposição de se tornarem minha clientela.

As mulheres, para mim, inexistiam. Nem prostitutas embevecidas com o impudor visitavam-me naquela caverna de bêbados tristes. Nem se eu as convidasse. Mas Tom Jones me alegrava com seu blues mesclado. Arriscava eu, às vezes, cantarolar enquanto recolhia os cacos de vidros estraçoados, resíduos de uma guerra ora interna, ora entre a própria clientela.

Volta e meia, um homem alto e magro, com um típico bigodinho fino e um paletó listrado, abordava-me no balcão.

- Carece de vender este tugúrio, polaco? Proposta como a minha, tenha certeza, não haverá!

No entanto, por mais que meu casebre desfalecesse gradualmente, nem a mais alta quantia e as mais belas ninfetas me tirariam daquele lugar forçosamente herdado. Lá, eu não sentia o tempo, e nem pretendia analisá-lo como um conceito a priori. Lá, eu não tinha o tempo. A cronologia de uma boa vida consiste em viver sempre novamente no Kairós. Não me tornei, em meu ofício, filho de Cronos, pois não almejava eu ser devorado pelo senhor do tempo.

Mas a verdade era que a totalidade de meu esforço culminou em um fracasso desesperador. O bar caiu. Os cupins o devoraram. Meus vinis de blues riscaram. Minha adega ruborizou-se com o tom dos próprios vinhos. Minhas lágrimas insistiam em lavar meu rosto empoeirado.

Desolado, ainda sobrevivi. Por fim, resolvi vender aquele acanhado espaço para o teimoso homem dos bigodes pontiagudos. O desgracido fez miséria! Arquitetou um prostíbulo, contratou putas aclamadas, aumentou o recinto...

Tornei-me sócio, afinal não pretendia deixar aquela aresta. Hoje, vivo em orgias, inebrio-me nas mais belas e carnudas donzelas, tequilas, nas quinas de sofás vermelhos e nos candelabros sugestivos. O melhor: Tom Jones ainda é minha trilha sonora, mas, agora, trauteio em conjunto.

Teatro mitológico/Reflexões metafísicas

Ato 1 – Condenados à forca.

- Sabes, homem, por que o tempo nos devora? Dize-me tu se ainda prevalece o belo nestes dias macambúzios e lamuriados. Dize-me se a corda em teu pescoço encerra a justa punição para ti: homem cujos defeitos são apenas reflexos. Sabe, se tu vives na caverna de Platão, és, de fato, reflexo e ilusão. Engana-te a ti mesmo, quando te acovardas e foges da vida, visto que és ainda repleto de vitalidade, por ora repreendida.

- Conheces o mito dos deuses, velho? Crono nos devora por ter-nos como ameaças. Corrompemo-nos aos poucos, então, por não termos a faculdade de vencer o tempo. Lembra-te que Crono castrou Urano, o próprio pai. Mas sentia-se ameaçado por servir-se de exemplo para os filhos. Estes, decerto, iriam castrá-lo a fim de tomar-lhe o poder. Receoso, Crono decide devorar os próprios procedentes, pranteados por Réia. Crono, que é o tempo, eterno vive; nós, filhos deste deus, somos devorados: nascemos mediante os espermas do tempo; finitos, morremos.

- E quanto ao belo?

- Ora, velho, o belo é justamente a ciência do contingente. Somos, tu e eu, belos pelas nossas finitudes. É o incompleto, este ser, que ainda nos mantêm. Não vês que estamos sempre na disposição da busca do perfeito e do universal. Mas atenta-te para o seguinte: o belo, ao qual me refiro, não é moral, mas poético.

Ó, homem! Não pretendo tirar lição disso. Sei que tu não és um ignóbil moralista, mas tão-somente um amante desta poesia incompleta: a vida! E, por isso, agora entendo o motivo de tua covardia que em difíceis momentos tiveras. Momentos estes que te trouxeram até aqui. Agora, o carrasco retira-lhe o banco que te sustentas. Eis o fim de tua poesia, excelente homem!

Bicho do Paraná

Curitiba é assim. Todo dia, renasço regionalista.O dilúculo é nauseado, pois o vampiro é solitário. E da mordida de outrora, só me resta o estigma perpetuado.

Caminho pela cidade e sinto a gravidade dos campestres. Nada de “Bom-dia!”. E por que teria de ser assim? Afinal, pretendo uma vida mal-educada só p’ra dar o que falar.

No cerne da timidez, encerro enigmas evolucionários. Mas para o curitibano só resta uma saída: afogar-se! Com quentão e pinhão. Estranho! Toda evolução flui. Prédios crescem diante dos olhos, enquanto a luz penetra debilmente a Ópera de Arame.

Em outros campos, vi gurias de Ipanema. Trajavam duas peças. Uma em cima, outra embaixo. Mas aqui também se sustenta o narcisismo. A polaca da XV. O jazz das esquinas. Os velhos de praças. A torre e o peão.

Malandro, não sou. Brancacento, pálido, sim.

Entristeço-me quando matam um carcará. Não diferente me sinto ao ouvir os disparos de lá.

Estranho. Eu. Pois não sou gato de Ipanema. Sou bicho do Paraná.

domingo, 6 de abril de 2008

A maldita mulher da minha vida

Ao terminar o boquete, ela me beijou. Tentei, ainda, me desvencilhar, mas não teve jeito. Engranzou a língua pentelhada em minha boca. Engasguei com o pêlo do meu próprio saco.

- ‘Tá gostando, amor?

Era p’ra ser somente um piquenique, mas as malditas bananas excitaram minha mulher. Amaldiçoado o dia em que usei pacoba como manguito plastificado, a fim de introduzir o artefato no armazém de Paula. Foi pau lá mesmo! O suor cascateou na testa dela, gemidos estridentes me lancinaram, os lábios femininos sugados para a própria boca também denunciavam prazer, enquanto o fruto - coitado - se atassalhava. Depois, a desgraçada me fez comer a pacoba. Fui banana!

Se fôssemos solteiros, talvez meu gozo borrasse a face de Paula, do modo como ela desejava. Mas somente borrifadas de espermas amarelados pintaram debilmente a fronte encanecida de minha senhora.

Gosto de saber que ela ainda tem prazer. Brinca com meu little Norris - mesmo murcho e acanhado. Nessas horas eu me alegro, pois sei que a infeliz ainda me ama. Tento, então, fazê-la afortunada, saciá-la. A idéia da banana encamisada ainda me persegue. É o melhor recurso, ainda que agourento.

Raramente, meu velho amigo desponta imponente por entre minhas pernas franzinas. Sem pensar – porque pensar o desanima -, corro para a bainha de Pandora de minha comparte. Quando ela não está por perto, masturbo-me com o pensamento nela. Sei que isso a deixaria feliz.

Prefiro esperar uma ereção a recorrer a instrumentos malacafentos. Mas aos poucos aprendo. Piquenique, por exemplo, sem bananas. Após o boquete, nada de beijos. Minha velha amada só quer me agradar, eu sei. E quando ela pergunta se eu estou gostando, penso: “Essa, e só essa, é a maldita mulher da minha vida”.

terça-feira, 26 de fevereiro de 2008