quinta-feira, 6 de dezembro de 2007

A ÚLTIMA CARTA DE ANNE SCAEVOLA

O sepulcro de William era branco como a neve que ladeava o cemitério. Os galhos das árvores estavam nus e cristalizados. As lágrimas que escorriam no rosto de Anne congelavam antes de tocarem o chão. O enterro de seu namorado não poderia ser diferente; o frio e o branco tomaram conta daquele melancólico dia.

Semanas antes, Anne escrevera uma carta que teria um impacto muito forte sobre o coração de William. Era a despedida. Anne estava pronta para partir – iria voltar ao Brasil. Londres não poderia suportar tamanha perca. A brasileira deixaria saudades; sobretudo a William, que a conhecera em uma festa na embaixada brasileira em Londres - ele era o embaixador.

Naquela festa o amor brotava na mesma intensidade em que a neve caia. Os olhos azuis e o nariz enrubescido de Anne Scaevola despertaram em William uma admiração que transcendia a imensidão do céu. Houve reciprocidade. Ali emergia o casal mais belo da cidade. As revistas, os jornais e vários outros meios comunicativos apontavam o casal como a perfeita mescla entre beleza, sensualidade e elegância. A brasileira vivia seu momento “conto de fadas”.

Anne havia deixado a família no Brasil, a fim de tentar impulsionar sua vida profissional de forma independente. William a ajudou a obter um cargo importante em um ilustre jornal da cidade. A vida de Anne parecia estabelecida. Tinha uma bela casa e um enorme jardim. Recebia flores, cartas de amor e homenagens televisivas. William não se cansava de fazer com que Anne Scaevola se sentisse uma princesa.

Numa típica noite fria, Anne recebeu a notícia sobre a morte de seu pai. Rapidamente, resolveu ir para o Brasil velar o homem que a pegou no colo e amou-a incomensuravelmente. Já no país onde nasceu, Scaevola pranteava ao segurar firmemente a mão de seu pai e ao acariciar o pálido rosto sem vida. A informação que obteve é que seu pai foi morto a tiros por indivíduos mercenários que comandam os caças níqueis brasileiros. A família de Anne passava por uma crise financeira. Seu pai fora um jogador viciado que perdera seus bens no jogo, e, também, a vida em função do vício.

Anne escrevia várias cartas a William, explicando sua situação. Voltou a Londres, vendeu sua casa e pediu demissão. Não poderia mais ficar com William, pois precisava cuidar de sua mãe e de seu irmão mais novo no Brasil. Escreveu mais uma carta: "a despedida".

William, como estava previsto, não aceitou aquele fim, já anunciado pelos jornais londrinos. Resolveu, por um impulso apaixonado, ir morar no Brasil e ajudar a família de Anne a se restabelecer, abandonando seu cargo de embaixador. Os primeiros dias foram tranqüilos. Eles construíram uma nova casa, em Londrina – cidade escolhida por Anne. O amor entre eles era vigoroso, desmedido. Eles estavam financeiramente bem com a presença de William. Mas o céu se fechou e o inferno enviou os mercenários que já estavam a par de tudo. Estes resolveram cobrar o que o morto devia. A morte do pai de Anne não foi o fim. Relutantemente, William tentou vingar a perca paterna de sua namorada. Eram os mercenários contra o apaixonado ex-embaixador. Um tiro preciso furou a testa de William. Os mercenários fugiram novamente, após retirar bens valiosos de Anne.

O corpo de William foi levado a Londres para que fosse dignamente sepultado. Os meios de comunicação anunciaram a triste historia de Anne e William. Discriminaram o Brasil, estampando notícias de que esse país é predominado pela corrupção e pela corja de bandidos.

Com a perca dos homens que mais a amaram, Anne entrou em crise psicológica: ficou louca. Escrevia cartas que eram enviadas à antiga casa de William, em Londres. Através das cartas, Anne dizia que estava quase pronta para voltar a ele, que a família estava recuperando as forças e o amor entre eles iria superar todos os obstáculos. Ela enviava cartas a um fantasma. Na última carta, antes de cortar os pulsos, escrevera: “O nosso amor é o começo, projeta um futuro iluminado e busca transcender o espaço e o tempo. Somos aquilo que nos une, invisíveis e indivisíveis. Somos o perfeito erro do passado”.

FIM

Dona Morgana

Os velhos, que observavam a Dona Morgana, suscitaram um caloroso diálogo a respeito das atitudes anômalas da velha. A senhora balançava-se sobre o assento suspendido por duas cordas presas a uma árvore do bosque. Tinha um constante sorriso no rosto e uma gargalhada lancinante.
- Ela irá levar um belo de um tombo! – disse o gordo, cujos olhos eram simetricamente vesgos.
- Ó, mas que caia! – acrescentou o magro, gesticulando as mãos e ajeitando os óculos com lentes de fundo de garrafa – Terei o prazer em socorrê-la.
- Olhe! A velha impulsiona-se com mais vigor. Será que ela tem problemas mentais?
- Ela é uma louca! Uma velha como ela não pode se aventurar dessa forma em um balouço. Ah, que gata insana!
- Certamente! Retirem-na de lá! – gritou o gordo, levantando-se.

Algumas pessoas passavam pelo local, mas nenhuma delas atendeu ao pedido do velho vesgo. Aflito, o gordo correu em direção à Dona Morgana. Aproximou-se da árvore em que ela se divertia e disse:

- Ouça, Dona! É necessário que a senhora pare de se movimentar assim sobre este balouço. É perigoso para uma senhora idosa.

Morgana nem lhe deu ouvidos, e continuou a balançar-se. O som de suas gargalhadas rivalizava com o barulho do galho que sustentava o balouço. O gordo desistiu de convencê-la a parar de balançar-se e voltou para o banco.

- Maldita velha que não me ouve! – disse ele ao magro. – Vê, ela nem se importa com o que os outros pensam.
- Ela deve achar que os outros são o inferno. Ah... – suspirou vigorosamente o magro – Mas ela é o paraíso.

Nesse momento, a velha aparentou-se cansada e parou de movimentar o balouço. Tirou o sapato de cetim e pôs-se a contemplar seus pés. Ela achava engraçado o movimento de seus dedos. Ria intensamente; divertia-se sozinha.

- Coitadinha. - continuou o velho de óculos. – Tão bela e tão louca!
- É uma pobre infeliz! – disse o vesgo em tom exclamativo. Os velhos estavam perplexos e decididos: “a velha é louca!”, pensavam. “Mas quem poderia deixar uma louca sozinha no bosque?” Isso eles não conseguiam entender. Subitamente, a velha se levantou e caminhou até eles. Os olhos esbugalhados dos homens acompanharam os passos dançantes de Dona Morgana.

- Quer dançar, belo homem? – perguntou ela ao tímido magro, que, desajeitado, abriu um sorriso e ameaçou se levantar do banco. Foi impedido pelo gordo.
- Deixe de ser tolo! Não há música sendo executada por aqui. Por um acaso você é louco como ela?
- Estou ficando louco por ela... – murmurou o magro.

O gordo estava horrorizado, e, dessa forma, irritou-se com o velho de óculos. Os dois discutiram. Foram interrompidos pela velha, que agora se dirigia ao gordo.

- E quanto a você, nobre homem. Quer dançar comigo?

O velho ficou estático. Queria parecer durão, mas, ao contrário, sentiu-se lisonjeado com a pergunta de Dona Morgana. Entretanto, era muito orgulhoso para dançar com uma velha louca. Aliás, que dança? Não havia música. Ele olhou para ela e respondeu:

- Dona, eu sou normal. Portanto, não danço com pessoas como você.

A velha ria. Aquelas palavras não a atingiram negativamente.

- Por que o senhor me olha, mas não me vê? – perguntou inocentemente a velha.

O velho vesgo se revoltou, muitos insultos foram tecidos à velha, ao passo que o magro caia na gargalhada. Os homens voltaram a discutir. Alguns murros e socos foram ensaiados. As pessoas que passeavam pelo bosque logo pensavam: “Ah, que tristeza! Dois velhos loucos brigando publicamente”. A velha bailava, os velhos brigavam. A velha se divertia, os velhos se golpeavam. Afinal, quem é normal e quem é louco?

Após uma trégua, os velhos puseram-se a contemplar, novamente, a Dona Morgana. “Por que me olha, mas não me vê?” Ah, essa pergunta martelou a cabeça do velho gordo, pois a velha estava feliz, sentia-se feliz. O infeliz era ele, que brigara e se importara com o modo de ser de outra pessoa. “Será que a velha não estava zombando de minha vesguice?”, perguntou-se. “Oh, como sou normal!”, pensou, enfim.